Nosso Século XXI (2ª Ed.)

Bandido não vê fronteiras,
mas nossas cidades sim

EDSON DE JESUS SARDANO - 16/09/2008


Regionalidade! Particularmente não acredito nesse grande desafio. Quem sabe no Nosso Século XXII?… Somos sete municípios desprovidos de identidades próprias, o que é mais complexo do que sete identidades diferentes. Há muito nossa auto-estima dorme em um canto qualquer da vida cotidiana. Se faltam unidade e identidade em cada uma das sete cidades em particular, o que dizer quando juntamos todas?


As vaidades locais (bem diferente de identidade) são claras e geram reflexos na política, na economia e onde quer que possa haver um espaço de intersecção. Seguindo a moral de uma fábula antiga,”não deve ir o sapateiro além das correias”, de modo que, após esta breve introdução, vou resumir minhas palavras à área que me acostumei a entender: segurança.


Ainda me arrepio quando ouço alguma autoridade pública dizer que segurança é um problema do Estado. Polícia sim é coisa do Estado; segurança não. Muitos já sabem disso, mas até hoje não apareceu alguém para discutir o tema de forma profunda e, o que é o principal, sem fronteiras municipais. A culpa não pode ser colocada exclusivamente nos ombros dos prefeitos. As autoridades estaduais raramente ajudam.


Por aqui, a cúpula das polícias na grande maioria das vezes é composta por pessoas de fora, sem muita noção do que é o Grande ABC e sem muito interesse em criar raízes, até porque as carreiras estaduais se desenvolvem melhor na Capital, onde estão os cobiçados cargos da alta direção, tanto na Polícia Militar como na Civil. É para lá, com boa dose de legitimidade, que todos querem ir.


Soma-se a isso o fato de que não há cultura de entrosamento por parte de nenhum dos citados atores, ou seja, a Polícia Civil pouco se entrosa com a Militar e as duas não se entrosam com as prefeituras. Por muitas vezes bocas graduadas escancararam elogios ao trabalho conjunto que se realiza na região, mas isso só convence quem acredita em Papai Noel.


O que se observa na prática é uma cortesia de fachada que envolve pessoas e interesses de varejo, dando a impressão de que, nessa Torre de Babel, fala-se a mesma língua. Uma reunião aqui, o aluguel de um DP ali, a reforma de um quartel acolá e chamam isso de sinergia. Há até clima de amizade entre as autoridades. Mas isso não extrapola a figura das pessoas, ficando longe do dia-a-dia das instituições.


Nenhum prefeito busca o governador
para superar obstáculos, a começar pelo
interminável rodízio de comandante e delegado


Voltando aos prefeitos e às partes que lhes cabem nesse latifúndio, nenhum ainda assumiu a responsabilidade para si e, pactuando com as autoridades locais, realizou um planejamento conjunto com metas e resultados. Nenhum buscou pela via política — exclusiva dos políticos — o apoio do governador do Estado para superar os muitos obstáculos, a começar pelo interminável rodízio de comandantes no que se refere à Polícia Militar e de delegados seccionais na Polícia Civil.


A Polícia Militar já tem um facilitador em sua organização, que é o fato de ter um comandante único para o Grande ABC. Falta a autoridade correspondente na Polícia Civil, o que seria resolvido criando no Grande ABC uma Delegacia Regional que centralizasse o comando das hoje três seccionais.


A partir daí, o Consórcio de Prefeitos poderia estabelecer uma agenda mensal reunindo o presidente, o delegado regional da Polícia Civil e o comandante regional da Polícia Militar. Juntos, apoiados por assessoria técnica, analisariam o mapa regional do crime, ou seja, o diagnóstico dos problemas pela ótica da incidência criminal, diagnóstico esse cada vez mais rápido e eficiente graças aos recursos da informática largamente utilizados pelas polícias, cada uma no seu canto.


Tal análise traz uma série de benefícios, mas o primeiro, que salta aos olhos e já pode ser adotado como lição de casa extremamente útil, é que se constatará que em cada local de alta incidência criminal há uma forte demanda por algum tipo de intervenção na esfera das posturas municipais. Simples, não? O difícil é assumir postura municipal como prioridade, em detrimento de interesses eleitorais, partidários, casuísticos etc. etc.


Enquanto cada município fizer o que quiser, achando que a ficção geopolítica chamada divisa impõe alguma espécie de barreira aos criminosos, muito dinheiro e suor serão despendidos, se não inutilmente, com alcance muito menor do que poderia ser atingido mediante uma ação regionalmente planejada. Ações isoladas às vezes contabilizam resultados importantes para gestores locais, pois conseguem mexer com o imaginário e com o bairrismo, criando astral favorável com reflexos na qualidade de vida dos moradores. Isso é louvável, apesar de completamente dissociado da realidade, como comprova farta estatística.


Um bom exemplo é São Caetano, que há alguns anos concentrou
considerável dose de recursos na difusão de uma imagem de cidade que investe em segurança, de modo que não é raro ouvir de moradores que se mudaram para o Município para fugir da criminalidade. Se as pessoas vissem o mapa da incidência criminal, constatariam que a barreira que pensam existir limita-se às suas cabeças. Ou melhor: não há grandes disparidades entre bairros com os mesmos níveis de urbanização em todas as sete cidades. A diferença está no prisma através do qual cada um enxerga a sua realidade.


Costumo utilizar o exemplo da Rua Marina, cujo lado esquerdo pertence a São Caetano e o direito a Santo André. Os esquerdistas só vivem mais seguros porque assim acreditam e nada mais! Bairro Campestre e Vila Santa Maria são idênticos sob o ponto de vista criminal, mesmo um estando em Santo André e outro em São Caetano.


Outro exemplo que gosto de citar é a equivocadamente chamada Lei Seca de Diadema. Equivocadamente porque a lei não trata de consumo de bebida alcoólica, mas de horário e estrutura de estabelecimentos onde tal prática é e, infelizmente, será sempre permitida. Diadema tem méritos, mas creditar à Lei Seca a drástica queda dos índices de homicídios é total desconhecimento da realidade local.


O próprio prefeito com muita honestidade enfatiza que o mérito é do entrosamento com autoridades estaduais, das operações conjuntas, das mudanças na legislação do País, do incremento de recursos humanos e materiais por parte do governo do Estado — que instalou com exclusividade para Diadema um Batalhão de Polícia Militar e uma Delegacia Seccional de Polícia Civil, transformando a realidade local em exemplo único para Município desse porte. Mas não adianta nada disso: a marca que ficou é que a Lei Seca tem poderes mágicos. Pena que tal magia não se repetiu em nenhum outro lugar onde foi aplicada isoladamente.


Quero deixar bem claro: tanto no exemplo de São Caetano como no de Diadema os prefeitos devem ser aplaudidos. Se atiraram em uma coisa e acertaram outra, ao menos atiraram. A intensidade do barulho é algo secundário diante do resultado positivo.


Virtudes à parte, o resultado dessas e de outras ações isoladas poderia ser potencializado sobremaneira se as mesmas medidas ou outras no mesmo sentido fossem adotadas em conjunto, subsidiadas pelas ferramentas e informações que só as polícias têm. Em outras palavras, é possível atingir melhores resultados com os mesmos investimentos. Está aí um excelente papel para ser desempenhado pelo Consórcio Intermunicipal do Grande ABC. O Consórcio de Prefeitos deveria ter assessoria voltada exclusivamente para a segurança, pois nada une mais as sete cidades do que a violência urbana.


Políticas de educação, transporte, saúde e outras podem ter começo, meio e fim dentro dos limites geográficos de cada Município, não refletindo necessariamente nas ações desenvolvidas pelo vizinho. No que diz respeito ao combate à criminalidade, uma ação inibidora desencadeada em uma cidade certamente implicará em processo migratório com reflexos imediatos em outra. O acompanhamento diário dos dados criminais mostra isso com clareza. Enquanto não houver uma instância que discuta tais medidas de forma sinérgica e sistêmica, vence quem saca primeiro, mas creio que não há mais lugar para bangue-bangue.


Mais um ponto importante: o que se pactuar aqui entre autoridades policiais locais, Poder Público municipal e sociedade organizada tem de ser registrado e deve virar um compromisso maior, de preferência referendado pelo governador do Estado. Isso para que a política de segurança da região não sofra quebra de continuidade com a constante troca de chefias, até mesmo quando for o caso de troca do secretário de Segurança Pública que, por não ter mandato, pode mudar a qualquer momento.


A segurança pública no Grande ABC é assunto com envergadura suficiente para ter a participação do governador. Até porque o papel dele se limitaria à vontade política e os dividendos seriam para todos. Em outras palavras, ao chegarem aqui, comandantes da Polícia Militar e delegados da Polícia Civil deveriam informar-se do planejamento e das ações que estão em curso, devendo dar-lhes continuidade. Poderiam até aprimorar as ações, quem sabe. O que não se pode mais é mudar radicalmente em razão de idiossincrasias ou projetos pessoais de curto prazo.


Depois de amadurecido e consolidado, esse processo poderá resultar em uma série de iniciativas conjuntas, como seleção e formação regionalizada de policiais, contratando servidores com raízes locais e uma central única de comunicações envolvendo Corpo de Bombeiros, Polícia Militar, Polícia Civil, Trânsito, Defesa Civil, Samu e Guardas Municipais a exemplo do 199 em São Caetano, só que esse funcionando, porque regional e verdadeiramente integrado. Além de a economia ser grande, um projeto dessa ordem teria forte apelo para alavancar recursos do governo federal, que por falta de interlocutores na segurança pública propriamente dita desperdiça muitos recursos com cosmética sociológica cara e ineficaz.


Como o assunto é segurança pública, criminalidade, violência urbana e quejandos, como diria o professor João Bosco, não poderia deixar de citar questão mais grave e tão urgente quanto: crianças. Como são tratadas as crianças em situação de risco social no Grande ABC? Será que são tratadas?


A antiga Febem, hoje Fundação Casa, vive à procura de local para instalar unidades por aqui. Teve político se jogando na frente de trator e o que mais se pode imaginar na tentativa de evitar que as obras de tal equipamento público fossem iniciadas. Eu mesmo, na ocasião, escrevi artigo no Diário do Grande ABC no qual propunha que se instalasse uma Febem na Lua, pois lá só São Jorge reclamaria.


Deixando de lado o mérito da questão, fica a pergunta: as mesmas pessoas que impediram a instalação da Fundação Casa na região propuseram o que no lugar? Ou será que, ao impedirem a obra, automaticamente todas as crianças que a ocupariam encontraram alternativas para passar o tempo, como igrejas, universidades etc. Santa demagogia!


Fica aqui a opinião final, ou quem sabe até a solução final: enquanto os conselhos tutelares não forem estruturados, equipados, multiplicados e apoiados devidamente, a polícia vai continuar a enxugar gelo por muito tempo. Criança fora da escola, na rua fazendo malabarismo ou vendendo bala está correndo risco. Quando uma criança corre risco constante e deliberado, os responsáveis devem ser notificados, processados, punidos e as autoridades competentes podem (e no meu entender devem) livrá-las do perigo, retirando-as da rua compulsoriamente.


Agora ficam perguntas para reflexão posterior: quem são as autoridades competentes? Tira da rua e leva para onde? A carapuça está aí. Vista-a quem quiser.


À guisa de sugestão, e caso algum leitor desconheça, informo que há dezenas de instituições assistenciais em nossa região cuidando de crianças carentes, evitando que muitas venham a ser vítimas da violência, mesmo se no pólo ativo, cada uma do seu jeito, sob inspiração de vários ideais, mas com algo em comum: todas recebem atenção ridícula por parte de todas as esferas de governo.


Parece que não lhes basta carregar nas costas as consequências de uma sociedade injusta e excludente, fazendo por vocação o que seria obrigação básica do Poder Público. Ainda é preciso enfrentar a falta de recursos, a burocracia, a arrogância e o despreparo de alguns técnicos e, pior ainda, a falta de sensibilidade de políticos que pouco fazem e, quando fazem, dão a conotação de favor.


Haja polícia!


Por fim, gostaria de dedicar umas linhas às guardas municipais. São organizações razoavelmente novas em relação ao aparato jurídico-policial brasileiro, mas creio que sejam uma realidade que veio para ficar. O problema é como ficar. Não conheço ainda Município — e os conheço aos montes — que leve segurança em geral e guardas municipais em particular a sério. E quando eu digo a sério, não falo de comprar armas e viaturas e colocar o pessoal na rua correndo atrás de bandido. Isso tem às pencas por aí. Falo de uma política de seleção, formação e remuneração compatíveis com a realidade e, principalmente, com o que se quer dessas instituições para o futuro.


Eu, que um dia defendi a municipalização da segurança, hoje rezo para que os congressistas não façam essa loucura. Não há uma cidade sequer preparada para assumir tal responsabilidade, nem mesmo São Paulo, a mais estruturada de todas. A União, que também não tem responsabilidade por políticas de segurança pública, conta com uma Polícia Federal tratada a pão-de-ló, o que pode ser um exagero, mas mostra claramente pelos resultados obtidos que uma polícia bem remunerada selecionará melhor os integrantes e, por consequência, trará melhores resultados e apresentará menos problemas.


Os administradores municipais brasileiros ainda não estão prontos para enxergar as guardas municipais de modo diferente de como olham os motoristas, eletricistas, operadores de máquinas e outros funcionários. Ou seja, todos ganham pouco, o treinamento é escasso e os equipamentos precários. Até o Estado, que paga mal por excelência, diferencia os policiais dos demais servidores, dando-lhes estrutura e um salário menos pior.


Toda a polícia deve ser militarizada, pois
no Brasil só militar não faz greve. Antes
de me apedrejarem, ouçam um governador


Enquanto um prefeito não investir na Guarda Municipal com medo de criar precedentes em relação às merendeiras de creche, aos ascensoristas, aos telefonistas e outras categorias de servidores que também exigirão equiparação, não há hipótese de se delegar a responsabilidade da segurança ao Município. Eu, particularmente, defendo a militarização de toda a estrutura policial brasileira, pois em nosso País só militares não fazem greve e a população não pode ficar à mercê de movimentos grevistas, mesmo os justos.


Antes de me apedrejarem, consultem todas as fontes possíveis e me mostrem um governador ou ex-governador que defenda a greve na polícia. Quem não precisa tomar conta da população por esse aspecto (segurança), como o presidente e os prefeitos, em alguns momentos de devaneio pode até achar que a categoria deve lutar por direitos, mas os governadores, que sentem o peso sobre os ombros, não podem nem ouvir falar. E pior: estão certos. Por isso que os policiais estaduais ganham menos do que merecem e continuam trabalhando. Eles são formados assim e têm tremendo orgulho disso!


Aos governantes, compete a sensibilidade de reconhecer-lhes a importância sem que seja necessário estar com uma faca no pescoço, método bastante utilizado não necessariamente por quem precisa, mas principalmente por quem pode. Nessa atividade há 30 anos, posso afiançar com serenidade: segurança pública dá muito o que falar, mas poucos estão preparados e se dispõem a fazer.


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